Sejam bem vindos (as)


Módulo 1 - O Surgimento da Psicanálise

Junto com Copérnico e Charles Darwin, Freud revolucionou a maneira do ser humano ver a si mesmo dentro do infinito universo. Ao assegurar que as ações e os desejos humanos não são frutos da vontade e da vaidade humana, mas sim do nosso inconsciente, Sigmund Freud sacudiu o mundo científico e criou uma nova maneira de entender a psique humana. O que dá a Freud tal importância, a qual ele parece manter mesmo diante do mais feroz dos seus críticos. Podemos refletir sobre tal questão ao considerar a extensão e a natureza da transformação que ele trouxe para a psicologia. Antes de Darwin, a psicologia, assim como as ciências naturais em geral estavam profundamente enraizadas na religião. Da mesma forma pela qual, o físico e cristão devoto Isaac Newton examinava a natureza, na esperança de desvendar os segredos de seu criador divino, aqueles que estudavam a natureza humana eram conduzidos por exigências religiosas semelhantes. De fato a psicologia não era originalmente mais do que uma vertente da teologia cristã; a própria palavra foi criada, no século XV, por teólogos dedicados ao estudo da alma. Tal como várias formas de saberes modernos, a psicologia, como disciplina que emergiu gradualmente durante o século XIX, conservou várias suposições e hábitos mentais pertencentes à idade da fé. Tinha suas raízes, de um lado no pensamento de Platão, e, de outro, nos ensinamentos religiosos cristãos. O que as tradições: platônica e cristã têm em comum é a crença de que seres humanos são feitos de duas entidades distintas - um corpo animal criado por Deus e um espírito, mente ou alma dado por Deus apenas ao homem. A psicologia estava interessada na alma dos seres humanos. O interesse dela em fenômenos cognitivos como memória, inteligência e percepção é uma herança desta perspectiva centrada na alma. Ao criar a psicanálise no final do século XX, Freud modificou essa perspectiva que existia até então. Uma disciplina que, antes, se interessava apenas por um extrato seleto e relativamente puro da existência humana, se viu, de repente diante do todo da vida humana. Os mais profundos sentimentos de homens e mulheres, e acima de tudo seus impulsos sexuais, claramente excluídos da filosofia por Platão, como forma de corrupção intelectual, foram então postos como tema central desta nova ciência, a psicanálise. O enorme apelo de uma forma de psicologia que coloca-nos de frente com um dos assuntos mais fascinantes que há ­ nossa herança animal e, acima de tudo, a natureza do desejo sexual humano, assim como a variedade de comportamentos sexuais ­ não deve ser subestimado. Provavelmente, seja por causa deste apelo que muitos não hesitaram em alçar Freud à condição de verdadeiro revolucionário intelectual, tal como fora Darwin. A fim de podermos avaliar se as realizações de Freud merecem a posição de nobreza que desfruta em nossa cultura, faz-se necessário expor como a psicanálise veio à luz e por que Freud colocou o sexo no centro da ciência por ele criada. A história da psicanálise está intimamente ligada com a vida de Sigmund Freud. Ele nasceu em 1856 em Freiburg, uma pequena cidade da Moravia, que se tornou parte da Tchecoslováquia. Quando Freud tinha quatro anos, seu pai, um comerciante de lãs judeu, mudou-se com a família para Viena. Freud cresceu, foi educado e clinicou em Viena durante toda a sua vida. Em 1938, fugiu dos nazistas, mudando-se para a Inglaterra, onde morreu no ano seguinte. Freud foi, antes de tudo, um cientista empírico. 

Acreditava que a chave para desvendar o segredo dos processos mentais seria encontrada no estudo da fisiologia do cérebro. A abordagem dominante da fisiologia humana na Europa durante os anos de formação de Freud era a escola de fisiologia de Hermann Helmholtz. De acordo com os princípios desta escola, os processos fisiológicos e mentais eram produto de leis causais e seqüências que poderiam ser reduzidas aos princípios da física, como o princípio da inércia e da conservação de energia. Charles Darwin, que era muito discutido nos círculos científicos da época, também influenciou Freud. Em função da sua criação na tradição judaica, Freud tinha uma profunda estima pela palavra. Manteve em sua vida, o fascínio pela literatura, particularmente pelos escritos de Johan Wolfgang Von Goethe e William Shakespeare. Por intermédio da sua familiar idade com a literatura e religião, Freud familiarizou-se com os papéis do simbolismo e do significado para entender as complexidades da mente humana. O pensamento de Freud sempre manifestou um elemento romântico, e não foi ao acaso que tenha sido agraciado com o Prêmio Goethe de literatura. A experiência de Freud na faculdade de medicina trouxe as bases para sua orientação científica posterior. O predomínio intelectual da época era o empirismo científico. Sua ênfase na medição e observação estava substituindo o misticismo e o romantismo que haviam impregnado o pensamento científico na Europa Central na primeira metade do século XIX. Durante os anos de estudo da medicina, Freud foi profundamente influenciado por dois mentores, Ernst Brücke e Theodore Meynert. Estas duas figuras dominavam a pesquisa fisiológica na Europa durante aquele período. Freud também trabalhou no laboratório de Brüke e considerava-o, em particular, um modelo cuja integridade e disciplina científica deveriam seguir. Brücke, Meynert e Exner apoiavam a idéia de que o sistema nervoso opera por meio da transmissão de excitações quantitativamente variáveis de terminações nervosas aferentes para as eferentes. 

Como a base química da condução neural era pouco entendida, supunha-se que a condução era de natureza elétrica. A noção central do pensamento de Brücke era de que a mente e o corpo são organizados por intermédio do paralelismo psicofísico. O arco reflexo era seu modelo de funcionam ento neural. Em outras palavras, nenhuma atividade central espontânea existe no sistema nervoso; ele meramente funciona como um instrumento passivo que permanece inativo até ser estimulado por energias exógenas. O resultado final do estímulo é a redução da irritação que ingressa a um mínimo. Essa fisiologia de forças e energias, baseando-se fortemente na doutrina da conservação de energia, exerceria um efeito de longo alcance sobre o pensamento de Freud. Após a graduação na escola médica, Freud continuou a trabalhar no laboratório de Brücke durante um ano. Foi lá que ele desenvolveu sua ambição científica predominante. Sua idéia era aplicar os princípios de Brücke ao sistema nervoso. Ele estava convencido que tanto manifestações psicopatológicas como o funcionamento mental normal poderiam ser explicados em termos das forças e energias que regulam o sistema nervoso.A pesquisa de Freud foi interrompida quando ele se deu conta de que o trabalho de laboratório não era suficiente para gerar a renda necessária para sustentar a família. Ele havia se apaixonado por Martha Bernays e foi forçado a iniciar a atividade clínica para prover um padrão de vida adequado à sua noiva. Em 1882, começou a trabalhar como clínico geral no Hospital Geral de Viena. Após uma passagem pelo serviço cirúrgico, começou a trabalhar na clínica psiquiátrica de Theodore Meynert. Há uma breve discussão com Meynert sobre os seus pensamentos, quando foi intimidado por esse, com um escorpião preto que mantinha em seu gabinete dizendo-lhe para não despertar o que é de mais oculto no ser humano, o que vive nas sobras da escuridão ­ o inconsciente. Este episódio é representado no filme Freud Além da Alma. O contato de Freud com a neuroanatomia e a neuropatologia, sob a carismática liderança de Meynert, levou-o a escolher a neurologia como especialidade. O estudo sobre psicose alucinatória aguda de Meynert exerceu um efeito duradouro sobre Freud e contribuiu para o conceito de satisfação de desejos, que posteriormente viria tornar-se uma parte central da sua teoria do inconsciente. O primeiro embate mal-sucedido, com a fama ocorreu em 1885, quando depois de realizar experimentos com cocaína. Ele buscou reconhecimento acadêmico, publicando um artigo que descrevia a droga como uma terapia miraculosa. No entanto, ao escrever tal artigo, deixou de observar as propriedades cruciais da droga como anestésico local, ao mesmo tempo em que omitia a necessidade de prevenção contra o vício. Mas, Freud não se deixou dissuadir por tal episódio desafortunado. Ainda em 1885, recebeu uma bolsa que lhe permitiu estudar de outubro de 1885 a fevereiro de 1886, na Salpetrière, em Paris. Lá sua carreira foi poderosamente influenciada pelo grande neurologista francês Jean-Martin Charcot. Charcot especializara-se no tratamento de pacientes que sofriam de uma variedade de sintomas físicos não explicados, incluindo paralisia, contraturas músculos enrijecidos que não podiam ser relaxados e ataques. Alguns destes pacientes adotavam uma postura bizarra chamada de arc-de-cercle, no qual se jogavam ao chão e arqueavam o corpo para trás até ficarem apoiados apenas pela cabeça e pelos calcanhares.


Charcot Charcot em suas aulas em Salpetrière. Finalmente Charcot concluiu que muitos de seus pacientes sofriam de um tipo de histeria induzida por suas reações emocionais e acidentes traumáticos do passado ­ como cair de um andaime ou ser vítima de um acidente de trem. Em seu ponto de vista, eles não sofriam dos efeitos físicos do acidente, mas da idéia que tinham formado sobre ele. Sob a influência de Charcot, Freud ficou fascinado pelo problema da histeria. Enquanto a maioria dos neurologistas não levava os fenômenos histéricos a sério, Charcot via-os como dignos de um estudo cuidadoso. Embora os considerando relacionados a uma degeneração congênita do cérebro, enfatizava o papel da hipnose no tratamento dos transtornos histéricos. Quando Freud observou o surgimento de manifestações histéricas pelo uso da sugestão hipnótica, começou a considerar a possibilidade de que a histeria tivesse origem psicológica. Freud desenvolveu a idéia de que uma das principais formas de neurose ocorre quando uma experiência traumática leva a formação inconsciente de sintomas. Através da ciência da hipnose, Charcot com seus discípulos puderam provar a decadência de um povo vivido sobre longo tempo de opressões e miséria econômica. Sigmund Freud foi muito mais longe ao perceber que o homem que não comunica tudo aquilo que está reprimido dentro de si, que não dá oportunidade a livre expressão, pode lhe causar danos profundos em seu psiquismo. Para Freud, Charcot era um libertador, por ter analisado o homem profundamente adoecido desde a época medieval, sobretudo, o que o efeito da religião, da política e da sociedade poderia fazer sobre o ser humano.

Freud retorna a Viena, continua seu debate com Breuer, ficou familiarizado com o método "catártico" de tratamento de Breuer. Este descobriu que a paciente "podia ser aliviada de (...) estados enevoados de consciência, se fosse induzida à fantasia afetiva, pela qual estava no momento dominada". Com o resultado disso, Freud gradualmente afastou-se do emprego da hipnose, como auxílio na rememoração de lembranças antigas e substituiu por uma técnica de aplicar pressão com a mão na testa do paciente, enquanto o incitava a concentrar-se. Desta maneira, gradativamente, deslocou-se para o sentido da técnica da associação livre, que parece ter sido empregada já em 1889 no tratamento de Emmy Von N., o primeiro caso a ser apresentado nos estudos de histeria. A exploração da sexualidade por Freud achava-se diretamente em linha com os interesses centrais de toda a sua carreira científica. Em seus escritos, surgiu um contexto com fortes tons políticos e religiosos, estreitos relacionamentos, que ele percebia entre a histeria e a cultura medieval. Freud retornou a Viena em 1886, decidido a continuar com seu duplo interesse em hipnose e neurologia. Na busca de mais conhecimento sobre as aplicações clínicas da hipnose, viajou para Nancy, na França, para estudar com AmbroiseAuguste Liébault, que estava tentando remover sintomas neuróticos por meio de sugestões hipnóticas. As observações sobre os usos terapêuticos da hipnose convenceram Freud de que poderosas forças inconscientes estavam envolvidas na motivação e no comportamento humano. Ele também percebeu que os próprios médicos podem desempenhar papéis significativos como instrumentos de mudança terapêutica. Em 1891, apareceu o primeiro grande trabalho neurológico de Freud, intitulado Afasia. Ele trazia uma explicação funcional para variações de transtornos afásicos em termos de rupturas de vias associativas irradiantes. Naquele mesmo ano, com Oscar Rie, um pediatra, ele foi co-autor de um importante trabalho sobre paralisia unilateral em crianças. Dois anos depois, ele escreveu uma volumosa monografia sobre paralisia infantil que recebeu grande reconhecimento. Concentrado em ancorar a psicologia na neurofisiologia, Freud lutava para aplicar os princípios da escola de Helmholtz aos mecanismos da mente. O resultado foi seu trabalho intitulado Projeto para uma Psicologia Científica. Freud ficou insatisfeito com o que escrevera e desejava destruí-lo. Este trabalho foi publicado postumamente, em face do reconhecimento de que tivera uma influência de grande alcance sobre as idéias posteriores de Freud. A explicação de Freud era que a dor poderia estar associada a um excesso de excitação nervosa e o prazer poderia ser visto como o resultado final da descarga desta excitação. Na raiz da teoria, estava um modelo de sistema nervoso que se apresentava como um recipiente passivo de estímulo de forças externas e um conceito de motivação em termos de tensão ou redução de impulso. Freud baseou-se no princípio da constância de Helmholtz. Esta teoria insistia que a soma das forças deve permanecer constante em qualquer sistema isolado. Em seu Projeto desenvolveu a idéia de que os processos mentais constantemente se empenham em obter equilíbrio ou homeostasia. Freud, quando escreveu o Projeto, acreditava que se uma pessoa experimentasse uma impressão psíquica, algo em seu sistema nervoso, que ele chamou na época, de a soma de excitação, aumentasse. Existiria em cada sujeito, uma tendência constante a diminuir esta soma de excitação, a fim de preservar sua saúde. Este princípio de constância serviu como a fundação econômica para a teoria dos instintos de Freud. Embora muitas das idéias de Freud em seu Projeto tenham sido confirmadas por estudos neuropsicológicos mais sofisticados, ele não obteve sucesso na tentativa de sintetizar o psicológico e o neurológico. Em alguns de seus trabalhos, Comunicação Preliminar (1893) e Estudos sobre a Histeria (1895), as noções da descarga de afeto e excitação cerebral derivam das idéias geradas no Projeto para uma Psicologia Científica. Além disso, o modelo da mente apresentado na obra principal de Freud, A interpretação dos Sonhos (1900), também tinha claras raízes no Projeto. Finalmente, sua compreensão do princípio do prazer-desprazer foi profundamente influenciada pelas teorias básica do Projeto. Inclusive bem mais tarde, em 1920, em Além do Princípio do Prazer, os derivados do Projeto são claramente evidentes. O interesse de Freud pela neurologia clínica diminui gradualmente, entre 1887 e 1897. Sua colaboração com Josef Breuer, um destacado colega mais velho com quem ele trabalhara no instituto de fisiologia de Brücke, levou-o às regiões mais profundas da mente inconsciente, um assunto que desviou seu interesse da neurologia em direção à evolução da psicanálise. Enquanto os dois clínicos lutavam juntos para entender os mistérios da histeria, eles deram a luz à psicanálise como uma técnica terapêutica, como uma disciplina científica e como um método de investigação.